sexta-feira, março 31, 2006

Ondjaki, Couves & Alforrecas

Quem é Margarida Rebelo Pinto?
Que faz Ondjaki neste post?
Para a primeira questão não tenho uma resposta muito clara, porque tenho sempre recusado a leitura da obra da autora, a qual, dizem, é light, portanto, mesmo que a lesse, não correria o perigo de engordar, suponho. O que me impressiona mesmo não é a qualidade literária de certos livros - está visto que a maior parte dos leitores não é muito selectiva -, mas sim as atitudes. Isto vem a propósito da polémica a que assisti esta semana acerca do que escreveu João Pedro George no blog esplanar sobre M.R.P. e que agora ia ser publicado em livro (Couves & Alforrecas. Os Segredos da Escrita de Margarida Rebelo Pinto). A dita senhora não quer que se fale mal da sua obra, daí a polémica providência cautelar. Pergunto outra vez: quem é Margarida Rebelo Pinto? Mais uma questão: onde está a liberdade de expressão a que o autor da crítica tem direito? Ela tem medo da quebra nas vendas? Pois com essa atitude salazarenta é que as vendas vão à vida. Sim, porque o leitor, mesmo que seja português, não é tolo.
Quanto à segunda questão, devo dizer o seguinte: a polémica a que acima me refiro perturbou-me a leitura de um dos contistas mais sensíveis e arriscadamente criativos que li nos últimos tempos - Ondjaki. A colectânea E Se Amanhã O Medo, duas vezes premiada, congrega histórias de uma África tão viva e mística quanto vibrante e aventurosa, com as múltiplas variações dos dias e das noites, dos sonhos brancos e dos ritos sonoros. Ondjaki é um escriba de hoje. O resto são couves e alforrecas...

quinta-feira, março 23, 2006

Frustração

Encontro-me no princípio de um estudo sobre sentimentos e cheguei àquele que se designa de frustração. O desafio que vos lanço é que me respondam, ainda que através de uma mentira, ainda que anonimamente: qual é a vossa maior frustração?

segunda-feira, março 20, 2006

Frida Kahlo

Frida Kahlo. Isso mesmo. Fui ver a exposição da pintora ao CCB. Agradou-me muito a oportunidade de observar a obra de uma autora deste nível de originalidade. Ficou-me a coragem de uma mulher que enfrentou o inferno, mas, acima de tudo, retive a transparência de uma dor sem limites, presente em cada risco, em cada pincelada. E só os pasteis de Belém e a companhia foram bálsamo numa tarde fria.

sexta-feira, março 17, 2006

Que Europa?

«A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. (...) Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da "ideia de Europa."»
George Steiner, A Ideia de Europa


Relembro George Steiner principalmente daquelas aulas enfadonhas da Leonor S., que lia com um Inglês altivo e postiço as teorias presentes numa obra capital do autor: In Bluebeard’s Castle – Notes Towards the Redefinition of Culture. Mas, descontando o cariz mortificante daquelas lições, ficou-me na memória o pensamento lúcido e inovador de Steiner. Ainda são de referência essas Notes, e, apesar de terem vindo a público em 1971, fazem sentido no contexto em que actualmente vivemos. A propósito deste autor, gostaria de salientar aqui outra das suas magníficas produções. É um livro mais recente, que contém uma das suas palestras proferidas no Nexus Institute: trata-se de A Ideia de Europa (Gradiva), em que se sintetizam as características essenciais do europeu. Como sempre, Steiner aguça a sua visão humanista do presente, projectando-a, igualmente, no futuro, dando realce ao fulcro dos problemas de uma certa Europa. Vale a pena ler. Nesta edição, só destoa um prefácio vazio, inútil e corriqueiro de José Manuel Durão Barroso, de quem se esperava muito mais (digo eu).

terça-feira, março 07, 2006

Entre ilhas

Talvez um dia alguém decida publicar este meu diário de que vos ofereço hoje um fragmento.


Domingo, 02/ 03/ 2003

Enfim, parece-me que regresso à ilha. Aquela ilha que um dia se apoderou de mim de uma maneira visceral; uma ilha com quem se luta uma batalha sempre perdida, gigantesca, acidentada.
Ainda em S. Miguel, de onde tantas vezes deixei este aeroporto, parece-me que recuo à fase de desorientação. Ir e vir. E sempre me faltando, neste cais e no outro, a âncora definitiva.
Volto ao isolamento das fajãs. De longe, já me aparecem tenebrosas no seu montanhoso feitio. Sempre a luta. Sempre a palavra por dizer, nunca encontrada naquele mar único, dolorido e sufocante.

segunda-feira, março 06, 2006

Reler Púchkin

Leva-me a partilhar convosco estas linhas a dimensão universal de um escritor russo um pouco esquecido: Aleksandr Púchkin. De novo li as Novelas do defunto Ivan Petróvitch Bélkin (Ambar), um conjunto de cinco contos escritos em 1830, os quais marcaram uma viragem na produção do autor. Neles estão superadas as técnicas do Romantismo, que ainda servem de base à nova tendência realista com que se descrevem personagens, espaços e ícones da vida russa. Ressalta, ao longo das páginas da obra, a alternância súbita entre o humor e o mistério, fios com que se tecem os dramas individuais dos habitantes de uma Rússia fechada, por vezes tão desconhecida. Deixo-vos um reconhecimento, tão cultivado pelos românticos nas bases trágicas de algumas obras, e também um momento horrendus com marcas de humor:

“– Meu Deus! – disse Maria Gravrílovna, agarrando-lhe a mão. – Então era você! E não me reconhece?
Burmin empalideceu… e lançou-se aos pés dela...”

A Nevasca
…………………….

“Nesse instante, um pequeno esqueleto passou por entre a multidão e aproximou-se de Adrian. A sua caveira sorria afavelmente ao cangalheiro. Farrapos de pano verde-claro e vermelho e de tela decrépita pendiam dele, aqui e ali, como de uma vara, e os ossos das pernas dançavam dentro das botas altas, como pilões dentro de almofarizes.”
O Cangalheiro

Pela universalidade do factor humano, sempre presente na obra de Púchkin, e por muito mais, é preciso dizer que ele é um escriba de hoje.